O MARIDO DA VENDEDORA ANA PAULA PERES MURARI NÃO SÓ ADORAVA JOGAR VIDEOGAME, COMO DESTINAVA UM DOS TRÊS QUARTOS DA CASA ONDE MORAVAM PARA GUARDAR SEUS APETRECHOS: COLEÇÃO DE JOGOS, ACESSÓRIOS PARA TURBINAR A EXPERIÊNCIA, COMO CADEIRA GAMER OU PROJETORES PARA AS IMAGENS. O CÔMODO ERA A "SALA DE VIDEOGAME". OS DOIS FILHOS IAM NO RITMO DO PAI.
Há três anos, no entanto, Ana Paula perdeu o marido para o câncer. O filho mais velho, Felipe, então com 11 anos, passou a jogar muito mais. "Antes ele brincava mais de outras coisas, saía com os amigos. Agora ele só fica no videogame, é a fuga dele", ela declara.
O rendimento escolar do garoto caiu bruscamente. Repetiu o 6° ano. Quando avançou para o 7° ano, repetiu também. E aí, pediu para mudar da escola particular para uma pública. "O conteúdo do colégio particular era muito para a cabeça dele", diz a mãe.
O filho mais novo, Arthur, de 9 anos, continua na escola particular, mas que isso foi claramente explicado para Felipe -- hoje com 14 anos: "Eu falei que só mudei a escola porque ele pediu, não quero que ele se sinta rejeitado porque o irmão continua estudando na escola paga. "
Outra preocupação de Ana Paula é a dificuldade do filho em fazer amizades. Embora ele sempre tenha sido tímido, a mãe percebe que poucas são as interações que não com outros competidores dos jogos da vez. "Quando ele está jogando online parece que ele se solta. Fala besteira, brinca, é outra pessoa. " Apesar de nunca ter passado noites jogando por causa da marcação cerrada da mãe, ele já chegou a jogar até altas horas da madrugada e só desligou ao ser repreendido por Ana Paula, que havia adormecido antes.
Desde a morte do pai, o adolescente já passou pelo consultório de três psicólogos e agora faz terapia em grupo com cerca de outras sete crianças -- cada uma com suas questões. Felipe foi diagnosticado com princípio de depressão.
Gaming disorder
No último dia 18, a Organização Mundial da Saúde oficializou a compulsão por jogos eletrônicos como um dos problemas de saúde mental que constam na Classificação Internacional de Doenças (CID). Especialistas explicam que diagnósticos de dependência não são dados de acordo com a quantidade da substância consumida -- ou nesse caso pelo número de horas de jogo. Tem de se observar a importância que o videogame ou outros jogos eletrônicos ocupam na vida da pessoa. A criança pode se afastar do convívio familiar, atividades da escola e, muitas vezes, não fazem nem mesmo atividades básicas como comer, dormir e tomar banho. Só parar com a intervenção dos pais.
Está na dúvida se o uso de seu filho é demasiado? Pergunte-se se criança ou adolescente deixa de sair para ficar jogando, se passa grande parte do tempo no jogo, ou sente-se mal quando é impedido de jogar.
O psicólogo comportamental Rodrigo Casemiro explica que nesses casos, o indicado é a inserção de outras atividades na rotina dessas crianças, também para ensiná-las a administrar seu tempo -- sempre pensando em que adulto essa criança vai se tornar. "É importante que pratique esportes, passeie no parque, leia ou cuide de um bicho de estimação", ele explica.
Os responsáveis podem e devem conversar com os filhos a fim de acolher e entender se está acontecendo algo mais sério. "Mas sem serem invasivos: mexer nas coisas que estão guardadas ou ler o diário, por exemplo não é recomendado."
"Os amigos que não jogam também ficam de lado"
Thalita*, completou 19 anos em abril deste ano. Como terminou o colegial e não decidiu o caminho a seguir, tem se dedicado mesmo aos jogos eletrônicos -- de videogame ou celular.
"Quando ela estava no segundo colegial, uma amiga com quem estudava desde a pré-escola mudou de escola -- aí ela ficou mais no mundinho dela ainda", conta a mãe, que é recepcionista. "Como ela sempre estudou de manhã, ia à escola, estudava, tudo certinho. Mas depois que parou de estudar, tem passado praticamente o dia todo jogando. Ela acorda e já liga o videogame. "
Como o filho menor, de 9 anos, também gosta de jogar, os horários são escalonados e Thalita só pode usar o videogame a partir das 19h: "Mas até dar o horário dela, ela joga no celular."
E, depois que engrena, passa madrugadas jogando online -- mais frequentemente no fim de semana. Ela quase não sai de casa, segundo a mãe, e prefere ficar jogando. Os amigos que vão visitá-la são bem-vindos, mas só se jogarem junto. Caso contrário, eles também ficam de lado. "A maioria dos amigos são os que ela faz online", conta a mãe, que gostaria que a filha arrumasse um emprego, já que ainda não decidiu se quer ir para a universidade.
Mas como está a pessoa que só joga?
"É sempre importante olharmos para além do comportamento exagerado e nos perguntarmos como está a vida daquela pessoa. Quais sofrimentos psíquicos ela está enfrentando?", questiona Thiago Fidalgo, PhD em Psiquiatria e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "É comum que, em momentos de grande sofrimento ou em casos de transtornos psiquiátricos não tratados, válvulas de escape apareçam para tentar lidar com aquela sensação ruim. O videogame pode funcionar como uma dessas válvulas", explica o professor de psiquiatria.
Para a psicóloga especialista em atendimento e acolhimento infantil, adolescente e familiar, Jussara Cavalcanti, considerar que esse vício seja uma apenas uma fuga é encarar o problema de maneira muito simplista: "Muitas vezes, a criança nem mesmo se dá conta de seu comportamento, pois isso vai acontecendo de forma gradativa. Às vezes, até mesmo os pais têm dificuldades para perceber essas mudanças", argumenta.
"O vício por videogames, assim como outros, envolve diversos aspectos emocionais. Até mesmo o ambiente familiar pode ser desencadeador deste tipo de comportamento. Um ambiente que não promova um bom acolhimento acaba afastando a criança do convívio familiar, e ela pode encontrar no jogo uma forma de se comunicar e de se expressar."
A mãe de Thalita já marcou psicólogos para ver se a filha está com algum problema, mas que quando chega o dia da consulta, ela diz que não quer ir. "Ela nunca foi uma adolescente de me dar problema, ir para a balada ou usar drogas, por exemplo. Mas ela não se abre, e houve um tempo em que ela veio com a ideia de se matar", conta. "Quando é criança é mais fácil de levar no médico ou psicólogo, mas adolescente é mais complicado", completa.
Quanto mais novo, mas fácil de andar na linha
A vendedora Gizeli Correa ainda consegue manter o pequeno Zion, de 10 anos, na linha. Mesmo quando ela está trabalhando, o pequeno telefona para a mãe para saber se pode jogar -- depois de terminar a lição de casa, claro. Ela conta que o filho pouco joga quando está sozinho, porque rapidamente se cansa se não tiver um companheiro. "O negócio dele é jogar com alguém. Ele aciona os amiguinhos, ou joga com o meu irmão, quando ele vai lá em casa. "
Em videogame, Gizeli não acredita que o filho seja viciado. "O vício dele é com celular. Além de ser o mesmo jogo [que jogam no videogame], não precisa substituir os fios na TV, por exemplo", explica. "Além disso, o celular está sempre com a gente, e dá pra jogar offline: é só baixar. Quando ele está esperando a perua [escolar], por exemplo, ele fica jogando. "
Mesmo quando viajam para a chácara da família, no interior de São Paulo, o tempo de brincadeiras na piscina é pequeno, se comparado à dedicação de Zion e seu amigo, também fã da pequena tela, aos jogos eletrônicos. "Eles ficam um do lado do outro no celular: passando de fase [do jogo], conversando...Tudo pelo telefone", conta Gizeli.
Consequências para saúde mental - e para a física também
Como crianças e adolescentes estão em período de desenvolvimento, o uso abusivo de qualquer coisa durante essa fase vai interferir na construção do corpo e da personalidade do adulto que será. O primeiro dos possíveis danos está, obviamente, ligado ao sedentarismo em que essa criança passa a viver diante da televisão ou de outras telas, uma vez que a atividade física é fundamental nessa fase -- e pode interferir até mesmo no crescimento da criança.
A psicóloga Jussara explica que outros aspectos da saúde da criança podem ser atingidos, como a postura, por exemplo. "A visão [pode ter algum dano] devido à luminosidade excessiva, que acaba irritando os olhos e causa a "síndrome do olho seco". A audição também pode ser prejudicada, uma vez que muitos utilizam fone de ouvido com volume elevado para jogar", diz a especialista.
"Quanto à saúde psíquica, devemos levar em consideração o isolamento social e familiar, que limita o aprendizado resultante deste tipo de convivência, além dos prejuízos cognitivos." Segundo Jussara, muitos outros distúrbios emocionais podem ser associados ao vício, como dificuldades emocionais. "Muitos se tornam indivíduos inseguros, depressivos, ansiosos, irritados, apáticos, tristes, com problemas de sono, dificuldade em expressar seus sentimentos, bem como em lidar com situações do dia a dia", concluiu.
A pediatra e professora de pediatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Evelyn Eisenstein, do Departamento Científico da Adolescência da Sociedade Brasileira de Pediatria e uma das responsáveis pelo guia Saúde das Crianças e Adolescentes na Era Digital, acredita que o distúrbio de games pode causar o aumento dos transtornos de sono, da impulsividade, da ansiedade, da depressão, da agressividade e da violência.
Na opinião da psicóloga Jussara, para entender os motivos e poder ajudar a criança, além de afeto e uma boa comunicação, a presença de um profissional especialista contribui de forma significativa. "Ele poderá trabalhar os aspectos emocionais e comportamentais que circundam este vício. "
*O sobrenome foi omitido para preservar a personagem
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